Por vezes temos de parar e sentir a vida passar-nos por entre os dedos... apenas isso, parar e sentir...
Por vezes a vida mostra-nos que a morte não passa de uma passagem para outra margem...
Não, não estou a tentar recordar a célebre música dos JáFumega. estou simplesmente a recordar-nos a todos que a morte pode muito bem ser uma viagem na barcaça que nos leva pelo reino de Hades, a revelar-nos tudo aquilo que poderíamos ter feito em vida e... que não chegámos a fazer...
O que dirá Saramago nesta sua viagem pela barcaça? O que dirá ele ao barqueiro nesta sua chegada à margem do rio que o levará até ao outro lado, aquele lado onde as almas se concentram à espera de uma nova descida à Terra?
Se a minha imaginação não me trair, ele estará neste momento a trocar com o barqueiro duas palavras acerca de como a palavra nos pode guiar por tantos caminhos diferentes que é preciso inventá-las de novo, com novos significados e com novos caminhos!
Se dependesse de mim, neste momento, na barcaça pelo rio do Hades, Saramago estará contemplando uma vida que atravessou por tantos diferentes caminhos quantos aqueles que me fez descobrir nas suas palavras...
... Saramago foi quem me fez despertar para uma escrita mais dérmica que epidérmica. Foi ele quem me fez ter uma vontade visceral de me revelar aos outros pelo verbo.O verbo sentido e amado, mais do que pensado. Pegar na língua mãe com carinho e ternura e levá-la ao avesso do verso, carregar-lhe as expressões com fúria e rasgar os sentidos de quem lê para o acordar da monotonia dos dias...
Saramago não é o Nobel da Literatura, Saramago é o homem da palavra reinventada, da escrita difícil e leitura complexa. É o homem que se ama ou odeia de forma visceral.
Posso dizer que amo a sua escrita, a sua exposição de cenas que nos aparecem perante os olhos cruas, reais, como um quadro de Rembrandt, plenas de humanidade. É por isso que amo Saramago o escritor. Mesmo que muitas vezes estivesse em desacordo com o homem.
Saramago já não é, mas na sua viagem pelo Hades, estará olhando duramente a sua vida, examinando os seus caminhos e se me não trair a imaginação, concluindo que a nossa vida é vários rios que afluem e defluem, levando-nos para um oceano que irá sempre dar àquela barcaça.
Mais vale que seja uma vida vivida na consciência de quem tem opiniões válidas, ainda que duras...